A Guerra na Ucrânia – para lá dela — “O Síndrome da Normandia e a Europa cativa”.  Por Augusto Zamora R.

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

O Síndrome da Normandia e a Europa cativa

 

 Por Augusto Zamora R.

Autor de ‘Malditos libertadores’, ‘Réquiem polifónico por Occidente’ e de Política y geopolítica para rebeldes, irreverentes y escépticos’. Ex-Embaixador da Nicarágua em Espanha

Publicado por  em 24 de Julho de 2022 (original aqui)

 

A Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen apresenta o regulamento de poupança de energia / REUTERS

 

A 23 de Agosto de 1973, um banco em Estocolmo foi assaltado por um ladrão de bancos que, tendo sido descoberto pela polícia, se trancou no banco com um pequeno grupo de reféns, entre os quais estava uma rapariga de vinte e dois anos chamada Kristin Ehnmark. Com o passar dos dias, Kristin começou a identificar-se com o sequestrador e a tomar o seu partido. Kristin criticou a polícia, pediu a outro refém que se deixasse levar um tiro na perna para que a polícia acreditasse que o sequestrador estava a falar a sério – o tiro não foi disparado – e até argumentou ao telefone com o primeiro-ministro sueco que o sequestrador “era bom” e que eles tinham medo que um ataque da polícia “causasse a sua morte”. Um ano depois, um jornalista da revista New Yorker entrevistou alguns dos reféns e descobriu que todos eles ainda mantinham uma atitude indulgente em relação ao sequestrador, de tal forma que as suas respostas continham gratidão para com ele, como se “lhe devessem as suas vidas”. O negociador principal com os atacantes, Nils Bejerot, chamou o processo psicológico que levou os reféns a identificarem-se com o seu sequestrador, apesar do perigo em que se encontravam, a “síndrome de Norrmalmstorg”. Mais tarde, o processo psicológico de identificação da vítima com o perpetrador passou a chamar-se “síndrome de Estocolmo”.

Em Junho de 1944 deu-se o desembarque anglo-americano nas praias da Normandia. Nenhum outro episódio da Segunda Guerra Mundial foi tão insistentemente comemorado, louvado, honrado e aplaudido de mil maneiras, desde os filmes aos discursos. A tal ponto foi glorificado que o desembarque permaneceu, no imaginário colectivo da Europa Ocidental, como “o episódio” que decidiu a Segunda Guerra Mundial, com o resultado de que os EUA tinham ganho a guerra e salvo a Europa dos nazis (e dos soviéticos). Pouco importava, neste imaginário, alimentado interesseiramente do outro lado do Atlântico, que o chamado Dia D tivesse de facto um impacto menor no curso da guerra. Em Junho de 1944, o Exército Vermelho tinha destruído a espinha dorsal do exército nazi, desde Estalinegrado a Kursk.

Porque, entre Julho e Agosto de 1943, em Kursk, três milhões de soldados, 6.000 tanques e 5.500 aviões enfrentaram-se numa das maiores batalhas da história mundial, com a vitória retumbante do Exército Vermelho. Na Normandia, cerca de 7.000 navios transportaram 156.000 soldados. Mas foi em Kursk, 640 quilómetros a sul de Moscovo, que a Wermacht fracassou na sua tentativa de infligir uma derrota final ao Exército Vermelho. A vitória soviética permitiu o lançamento de uma ofensiva esmagadora sobre a Alemanha. Em Junho de 1944, a Operação Baghration terminou com a maior derrota militar da história alemã. Quase meio milhão de soldados alemães pereceu e o Corpo Central da Wermacht foi destruído. Berlim estava a um passo de distância. A 12 de Janeiro, o Exército Vermelho penetrou na Alemanha, enquanto as forças anglo-americanas tinham sido travadas nas Ardenas, na Bélgica. No final de Janeiro, 1,5 milhões de soldados soviéticos começaram a ser destacadas em torno de Berlim. A 2 de Maio de 1945, o General Weidling entregou Berlim ao Marechal soviético Zukov.

Esta é a verdadeira história. A história contada é outra. Chegou a 7ª Cavalaria, aterrou na Normandia e os invencíveis herdeiros do General Custer derrotaram a Alemanha nazi e libertaram a Europa. Depois trouxeram sacos de dinheiro – o Plano Marshall – e quantidades infinitas de bens – as futuras multinacionais – e a liberdade e prosperidade brilharam na Europa Ocidental graças à infinita generosidade do Tio Sam. Em 1947, o Tio Sam garantiu a segurança de uma Europa medrosa ao criar a NATO e eles, europeus ocidentais e “americanos”, estavam felizes para sempre. O conto de fadas, como todos os contos de fadas, tem outra leitura, que traz o sonho de volta à realidade, e, já se sabe, é uma coisa má confundir sonhos com realidade. Aqui está a outra leitura.

Nenhum país do mundo beneficiou tanto dos desastre europeus como os Estados Unidos. Durante as guerras napoleónicas, a mobilização massiva dos camponeses deixou as zonas rurais desertas e as potências beligerantes estavam desesperadas por comida. Os EUA foram rápidos a preencher a lacuna e passaram anos a vender tudo o que era vendável à Europa em guerra. Os lucros foram tão elevados que lançaram as bases para um crescimento económico prodigioso durante o século XIX. Houve outro benefício indirecto: a pobreza e a fome deixadas pela guerra forçaram milhões de europeus a emigrar para os EUA, basicamente despovoados, que receberam cerca de dez milhões de párias em pouco menos de vinte anos. Com os emigrantes europeus vieram novas tecnologias, novas ideias e mão-de-obra abundante e barata, disposta a fazer tudo. Uma pechincha.

No entanto, a Primeira Guerra Mundial foi um presente ainda maior para os EUA. Com as grandes potências a autodestruírem-se, os EUA aplicaram-se no comércio com os dois blocos beligerantes, obtendo lucros astronómicos. Só entrou na guerra meses antes do fim do conflito, sob pressão desesperada do Império Britânico, que estava a ser sangrado humana, comercial e economicamente, pela guerra. Até esse momento, o comércio com o bloco britânico tinha aumentado de 824 milhões de dólares em 1914 para 3.215 mil milhões de dólares em 1916. As suas vendas para as Potências Centrais – sobretudo a Alemanha – aumentaram de 169 milhões de dólares para 3.214 mil milhões de dólares no mesmo período. As tropas americanas entraram em França em Junho de 1918 e a Alemanha, exausta e sem reservas, rendeu-se em Novembro desse ano. Os EUA combateram durante apenas quatro meses e perderam menos soldados no total do que a França ou a Alemanha numa única batalha. Dos 115.000 mortos americanos, apenas 50.000 foram mortos em combate. Os restantes morreram de doença. A Europa ficou em ruínas e endividada com os EUA. O negócio era tão bom para os EUA que o seu PIB passou de 33 mil milhões de dólares em 1914 para 72 mil milhões de dólares em 1920. Um aumento de 120% em apenas seis anos. A partir da sua hegemonia económica, os EUA geriram a Conferência de Versalhes, que condenou a Alemanha à ruína total. Foi nesta conferência, impulsionada pelo ódio aos Alemães, que nasceu a Segunda Guerra Mundial. Além disso, os soldados americanos trouxeram a chamada gripe espanhola para a Europa, o que agravou ainda mais o colapso europeu.

A Segunda Guerra Mundial forçou os EUA a fazer um esforço maior e mais cedo, mas mesmo assim deixou-o com mais benefícios do que a Primeira Guerra Mundial. Bastou o desencadear da guerra para que a sua produção industrial aumentasse 20 por cento. Em Abril de 1940, os EUA tinham ultrapassado o nível de 1929, na época da Grande Depressão. No final do conflito, as baixas americanas totalizavam 404.399 soldados (números oficiais), menos de metade das baixas soviéticas em Estalinegrado. Era, além disso, o único país beligerante cujo território não tinha sofrido quaisquer danos. Graças à destruição da Europa, a marinha mercante norte-americana representava 66% da tonelagem mundial e o seu excedente comercial em 1945 era de 40,7 mil milhões de dólares. Para lhe dar uma ideia, um dólar em 1940 é equivalente a 20 dólares em 2022. Por outras palavras, o excedente era de cerca de 800 mil milhões de dólares em dólares de hoje. A Europa, por outro lado, estava destruída. A produção industrial tinha caído 40% e a produção agrícola até 50%, e os países estavam afogados em dívidas. O Plano Marshall aumentou a riqueza dos EUA e certamente permitiu que os beneficiários se restabelecessem, mas esse plano – empréstimos, na realidade – foi pago religiosamente pelos europeus. Foi negócio, não caridade (daí que o PIB médio per capita na Europa fosse de $5.013, em comparação com $27.331 nos EUA). Com o Plano Marshall vieram empresas americanas, no que era a certidão de nascimento das multinacionais. E com o Plano Marshall veio a NATO, uma organização que traduziu a hegemonia política e económica dos EUA em termos militares.

A Segunda Guerra Mundial deixou os EUA como amo e senhor da Europa Ocidental, tal como a Grande Guerra tinha feito dele a maior potência industrial do mundo. Como afirmaria o economista canadiano John Kenneth Galbraith, “Nenhum país nos tempos modernos emergiu de uma guerra em circunstâncias económicas tão felizes como os Estados Unidos em 1945”. Tanto assim que, em 1950, os EUA detinham 50% do PIB mundial, algo nunca antes visto na breve história do tempo humano. A Europa Ocidental, pelo contrário, em tudo estava subordinada às políticas dos EUA. Embora as raízes remontem à I Guerra Mundial, a dependência da Europa Ocidental em relação aos EUA foi criada na Guerra Fria, e esta dependência (mais uma vez, política, comercial, económica, económica, militar e ideológica) tornou-se patológica. A UE tornou-se um galinheiro.

Será que isso mudou em 2022? Sim, para pior. Aqui ficam alguns factos para o leitor inteligente tirar as conclusões que desejar. O galinheiro está a enfrentar uma crise energética com – quase – nenhuma solução, da qual os EUA estão a tirar partido para vender o seu gás a quatro ou cinco vezes o preço de Fevereiro passado. A histeria de armas deixa um claro e total vencedor: o complexo militar-industrial dos EUA. Os EUA estão a arrastar o galinheiro para a guerra com a China; se houver guerra, o galinheiro entrará em colapso (a Alemanha em primeiro lugar), pois as relações económicas com a China são vitais para a UE, como vital é o gás russo.

Os EUA tiraram terras aos índios e ao México e enriqueceram com a escravidão dos negros. Isto é bem conhecido. É menos conhecido que o dinheiro líquido, fresco, dinheiro em enormes quantidades astronómicas, tenha vindo da Europa, ordenhado em todas as guerras e conflitos pelos EUA. Os EUA não estão interessados no galinheiro. Apenas no seu dinheiro. O euro entrou em colapso (o rublo não) e está ao nível do dólar. Com lucros enormes para os EUA, porque o gás e o petróleo são pagos em dólares, como centenas de outros bens. Isto significa que ao aumento dos preços dos combustíveis, que até há algumas semanas atrás pagavam 1,20 dólares por um euro, tem de se acrescentar mais 20%. Está a ver?

Mas, esteja atento ao facto. Neste século XXI não há nenhum binómio Europa/EUA a dominar o mundo. Há outro mundo, plural, multipolar, industrial, à espera da sua oportunidade. São a China, a Rússia, a Índia, a Indonésia, o Irão, o Brasil, a África do Sul… Nesse mundo, a UE conta pouco, não conta nada. A sua síndrome da Normandia pode apressar o seu fim, pois a submissão patológica aos EUA levou-a a renunciar à defesa dos seus interesses. Assim, por exemplo, os EUA têm as suas próprias fontes de energia auto-suficientes enquanto a Europa não as tem. Os EUA irão recolher os biliões de euros pagos pelo gás, petróleo e armas dos EUA e, com isso, a transferência de dinheiro fresco do galinheiro europeu para os bolsos do Tio Sam irá continuar. Os EUA ganham, a UE perde. Uma Europa cativa que está grata pelo seu cativeiro e está mesmo disposta a morrer pelo seu sequestrador, ainda que esse sequestrador nunca arriscaria a sua segurança por este triste galinheiro, cego e envelhecido.

O cinema de Hollywood fez o resto, com o bombardeamento audiovisual de uma indústria que teve laços históricos directos com a CIA e o Pentágono. Foi assim que surgiu e se criou na Europa Ocidental a visão dos EUA como uma superpotência imortal, todo-poderosa. Os EUA são Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, Aquaman… A análise política tornou-se obediência cega. A imagem do Dia D e de um país que, a qualquer momento, pode encher a Europa Ocidental de mantimentos e armas está gravada no inconsciente europeu. O mito de todos esses super-heróis transformou-se numa síndrome, a síndrome da Normandia. Como a de Estocolmo, mas ao nível de uma peste zombie. E, já se sabe, os mortos-vivos acabam, nos filmes, por morrer todos. Também não se enganem. Não haverá outro Sétimo de Cavalaria. Ele está ocupado com a China. Final feliz.

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O autor: Augusto Zamora R., antigo Embaixador da Nicarágua em Espanha, foi Professor de Direito Internacional Público e Relações Internacionais na Universidad Autónoma de Madrid. Foi também professor na Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua, bem como professor visitante em várias universidades da Europa e da América Latina. Foi director jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros e chefe de gabinete do Ministro dos Negócios Estrangeiros de 1979 a 1990. Fez parte da equipa de negociação nicaraguense nos processos de paz de Contadora e Esquipulas, desde o início até à derrota eleitoral do Sandinismo. Advogado da Nicarágua no processo contra os Estados Unidos no Tribunal Internacional de Justiça, tem participado em numerosas missões diplomáticas. Membro de pleno direito da Academia Nicaraguense de Geografia e História, tem contribuído, tanto em Espanha como na América Latina, há mais de uma década, para jornais como El Mundo e Público e revistas como PAPELES de Relaciones Ecosociales e Cambio Global. As suas obras incluem El futuro de Nicaragua (1995; 2ª ed. alargada, 2001), Actividades militares y paramilitares en y contra Nicaragua (1999), El derrumbamiento del Orden Mundial (2002), La paz burlada. The Contadora and Esquipulas Peace Processes (2006), Politics and Geopolitics for Rebels, Irreverents and Sceptics (2016; 3rd enlarged ed. 2018) e Polyphonic Requiem for the West (2018).

 

 

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